Há muitos anos, ao pesquisar um novo repertório para minha orquestra, deparei com a partitura de Noite de Verão, de Zoltán Kodály. A dedicatória a Arturo Toscanini imediatamente chamou minha atenção, e achei que valeria a pena olhar com mais cuidado.
Na época, sem nada como YouTube ou Spotify, transitar pelo emaranhado sonoro de um compositor até então desconhecido era um processo que consumia muito tempo e esforço. O que descobri me encanta até hoje.
Para mim, a peça representa um cenário próximo, familiar: há algo em comum entre o relevo plano da Estônia e a puszta húngara (que acredito ser exuberânalgo semelhante aos pampas gaúchos). Uma leve melancolia e o vazio de grandes espaços abertos criam uma sensação nostálgica de desejos não realizados, planos que poderiam ter se concretizado, eventos que poderiam ter acontecido.
Há muito potencial nesse cenário: a energia ali armazenada é farta. E, de repente, surge um tema dançante, que é seguido por um outro, lírico, e interagem apaixonadamente até serem interrompidos. Um ritmo pulsante, regular, oferece a chance de reconciliação e anuncia a conclusão. Mais uma vez, a dança se insinua. Mas, novamente, a batida cadenciada assume a cena, desta vez em harmonia com os dançarinos, e os guia rumo à casa na tonalidade final de Ré Maior.
O que foi aquilo? O que aconteceu naquela noite? A resposta só pode ser dada por nós.
ARVO VOLMER. Tradução de Jayme da Costa Pinto.
Mozart escreveu com igual maestria sinfonias, música de câmara, missas, óperas e concertos. Estes últimos perfazem um corpus musical notável, que por si só já teria garantido a fama do compositor. Se nos acostumamos a pensar em concertos como sinônimos de virtuosismo, aqui, o que se desvela é um domínio da expressão de sentimentos sobrepondo-se às demais virtudes. Obra de maturidade, terminada em 1786, no auge criativo da vida de Mozart, o Concerto nº 23 Para Piano é a mais lírica e introspectiva de suas incursões no gênero. Nele, trompetes e tímpanos são dispensados, e pela primeira vez clarinetes substituem os oboés. A escrita consegue ser ao mesmo tempo intensa e equilibrada, com um timing dramático normalmente associado à ópera.
O primeiro movimento, no estilo das serenatas para sopros, exibe um melodismo desabrido, em que simples escalas se derramam com alegria, ao mesmo tempo que breves momentos de melancolia — que aparecem nas hesitações entre modo menor e maior — se revelam, prenunciando o clima quase trágico do “Adagio”. Este, único movimento central dentre os concertos mozartianos a ser denominado “Adagio”, é também a única peça do autor na tonalidade de Fá Sustenido Menor, descrita pelo compositor e teórico Johann Mattheson (1681-1764) como apropriada para a “tristeza grande, lamentosa, enamorada”.
Por definição, concertos são música pública, extrovertida, a ser tocada diante de grandes plateias. Mas nesses menos de cem compassos de música em ritmo de siciliana, a sensação é a de estarmos ouvindo música de câmara, intimista e dolorida, que fala dos sentimentos mais privados. Depois de tão clara expressão de sofrimento, o “Allegro Assai” final irrompe com ares de ópera-bufa e exuberânalgo cia contagiante. Talvez justamente pelo contraste com o caráter sombrio do anterior, o movimento se impõe como um dos momentos mais luminosos e cheios de esperança da música ocidental.
LAURA RÓNAI é fl autista, professora na UniRio e autora de Em Busca de um Mundo Perdido: Métodos de Flauta do Barroco ao Século XX (Topbooks, 2008).
A Sinfonia nº 6, de Tchaikovsky, também denominada Patética (uma tradução mais acurada seria “passional”), foi dedicada pelo compositor a seu bem-amado sobrinho, Vladimir Davydov. Tchaikovsky parecia antever o potencial desnorteador daquela que considerava sua melhor obra. Após a estreia em São Petersburgo, em 28 de outubro de 1893, escreveu a seu editor: “Algo estranho se passa com esta sinfonia. Não é que o público não goste dela, mas causa certa perplexidade.”1
Å As primeiras plateias devem ter se impressionado com o “Adagio Lamentoso”, fecho doloroso e insólito para uma sinfonia até então. Mas a morte de Tchaikovsky, poucos dias depois da estreia, de cólera contraída ao tomar água não tratada, desencadeou múltiplas especulações acerca do último movimento, entendido como uma espécie de canto de cisne, se não como um bilhete de suicida.
Tornou-se popular a versão de que o compositor se envenenara diante da ameaça de um escândalo sexual. Alexander Poznansky, autor de uma respeitada biografia de Tchaikovsky, considera tal hipótese muito improvável, tendo em vista a elevada posição social do compositor e a atitude tolerante para com a homossexualidade que predominava nos círculos da elite russa por ele frequentados no final do século xix — nos quais, aliás, o assunto não era bem um segredo, ao menos desde o fim de seu desastrado casamento, em 1877.2
Ficções têm seus efeitos, porém. Como notou Richard Taruskin, na virada do século xix para o xx, na esteira do rumoroso julgamento do escritor Oscar Wilde por sodomia, parte da crítica ocidental passou a submeter Tchaikovsky a uma espécie de afeminação estética depreciativa, descrevendo-o como “patológico” e “histérico”, acusando sua obra de “frouxa”, “decadente”, “emocional” e kitsch.3
É como se a morte trágica confirmasse as consequências previsíveis da suposta “anormalidade” personificada em arte “doentia”, aprisionando o compositor na caricatura do homossexual envergonhado e infeliz. Em contrapartida, há quem acredite que a homossexualidade é a via privilegiada para revigorar a compreensão do artista.4 Novas polêmicas e disputas se acendem em torno do lugar do desejo na criação artística.
Na Patética, arte e imaginário se medem na força dos sentidos múltiplos que ouvintes e intérpretes imprimem à obra. Mas é a maestria de Tchaikovsky que faz o drama operar com o máximo de efeito, como na explosão de dor que assombra a melodia célebre do primeiro movimento, ou na estranha valsa em cinco tempos do “Allegro Con Grazia”, que o escritor inglês E.M. Forster realçou em uma passagem de Maurice, seu romance de temática homossexual. Também na irresistível marcha do “Allegro Molto Vivace”, com seu clímax retumbante. E no pungente tema final, aniquilado até restarem só pulsações, que se extinguem em silêncio. [2015]
JÚLIO ASSIS SIMÕES é professor do Departamento de Antropologia da USP.
1. Ross, Alex. “Swan Songs”. The New Yorker, 30.11.1998.
2. Poznansky, Alexander. Piotr Tchaikovsky: Biografia. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2012.
3. Taruskin, Richard. Music in The Nineteenth Century: The Oxford History of Western Music, v. 3. Nova York: Oxford University Press, 2009.
4. Ver, por exemplo, Jackson, Timothy. Tchaikovsky: Symphony no 6 (Pathétique). Cambridge: Cambridge University Press, 1999.