Diz a sabedoria popular que amor e ódio nascem no mesmo lugar. Verdade ou não, os mestres na arte da sedução bem sabem que a provocação pode ser uma poderosa arma — quanto mais aguda, mais certeira. Eis o segredo dos espirituosos Beatriz e Benedito, personagens da comédia Muito Barulho Por Nada, de Shakespeare, que dão título à última ópera composta por Hector Berlioz, concluída em 1862. A impertinência de Beatriz só encontra par na arrogância de Benedito, e a troca de farpas continua até mesmo nas juras matrimoniais, no happy end da peça — e da ópera.
Mal comparando, eis um bom precedente para um dos gêneros cinematográficos mais populares de nossos tempos: a comédia romântica, que infelizmente poucas vezes esteve à altura da obra-prima de Shakespeare. Isso dito, quem poderia esquecer de Emma Thompson — mais radiante que nunca — como Beatriz, na deliciosa versão para o cinema, dirigida e estrelada por Kenneth Branagh, em 1993?

Berlioz sempre foi fascinado por Shakespeare e escreveu várias obras inspiradas em peças do autor — a mais célebre delas é a “sinfonia dramática” Romeu e Julieta, de 1839. A “Abertura” de Beatriz e Benedito antecipa várias passagens da ópera, saltando graciosamente de uma atmosfera para outra — da esfuziante melodia de introdução para uma passagem de intenso lirismo, baseada na ária “Il m’en Souvient” [Ele me Lembra]. Começa então um divertido diálogo entre sopros e cordas, que constitui o trecho principal da obra, e é desenvolvido até o vívido finale.
RICARDO TEPERMAN é editor da Revista Osesp e doutorando no Departamento de Antropologia Social da FFLCH-USP.
O crítico de música Georg Predota, em artigo recente,1 formula a pergunta: “Qual grande composição de Wolfgang Amadeus Mozart teve que esperar 147 anos após sua morte antes de ser apresentada novamente? A resposta é realmente surpreendente, visto que envolve uma obra do gênero mais popular, composta durante seus anos finais em Viena.” Trata-se do Concerto no 25 Para Piano em Dó Maior, KV 503, concluído em 1786, numa época prolífica em criações extraordinárias.
A obra foi concluída durante o intervalo entre a primeira apresentação de As Bodas de Fígaro, em maio de 1786, e a encomenda de Don Giovanni, em janeiro de 1787. Nessa mesma época, Mozart completou a Sinfonia no 38 em Ré Maior, KV 504, regendo-a em janeiro de 1787, em Praga, onde o compositor foi recebido como herói e obteve uma das maiores aclamações de sua vida. A Sinfonia no 38, cujo nome homenageou a cidade onde foi tocada pela primeira vez (“Sinfonia Praga”), passou imediatamente a fazer parte do repertório mozartiano executado com mais frequência. [Ela será tocada pela Orquestra de Câmara da Osesp no próximo dia 12/4.] Já o concerto KV 503 caiu num estranho e prolongado esquecimento.
O próprio Mozart o tocou em Viena, em 5 de dezembro de 1786, um dia após terminá-lo, tendo feito mais duas apresentações, uma em 7 de abril de 1787, também em Viena, outra em 12 de maio do mesmo ano, em Leipzig. Só em 1934, Artur Schnabel o interpretou com a Filarmônica de Viena, sob a regência de George Szell, marcando a primeira apresentação da obra depois de ser tocada pelo autor, quase um século e meio antes. E somente na segunda metade do século xx o concerto foi de fato incluído no repertório das obras mais executadas do mestre. Tal fato gera uma certa perplexidade, especialmente por se tratar de um compositor já reconhecido quando da estreia e, especialmente, ao se considerar a enorme apreciação do público da época pelos seus concertos para piano.
O que houve com o Concerto no 25? O que pode explicar o enigma de seu esquecimento por 147 anos? Em primeiro lugar, ainda nas palavras de Predota: “Essa composição simplesmente não atendeu à expectativa do público de Mozart. Certamente, eles esperavam encontrar melodias encantadoras, uma interação lúdica entre orquestra e solista, frases musicais bem-humoradas, modulações incomuns e surpreendentes e, acima de tudo, lirismo operístico”. De fato, os primeiros concertos vienenses (KV 413-5) foram escritos especificamente para destacar essas qualidades, atraindo pessoas não iniciadas em música. O que foi evidenciado pelo próprio Mozart numa famosa carta a seu pai, de 28 de dezembro de 1782, em que revela suas intenções e antecipa a reação da plateia: “Mesmo os não conhecedores ficarão felizes, sem saber por quê”.2
Os concertos para piano tornaram-se, nas mãos de Mozart, um verdadeiro laboratório de experimentações formais e linguísticas, e o Concerto no 25, de excepcional riqueza e complexidade, obra de um Mozart maduro, talvez tenha sido novidade demais para a época. O fato de Mozart estar criando algo novo e único, que abriria caminhos ainda não trilhados e iria influenciar os compositores que viriam depois, certamente dificultava a sua plena aceitação pelo público em geral. E mesmo o sofisticado público de Viena não estava preparado para uma obra tão ambiciosa, construída com tal grandeza estrutural e, sobretudo, diferente do que se esperava de um concerto para piano de um compositor tão conhecido. Certamente, tal grandeza foi responsável pelo concerto ter sido considerado, nas palavras de Olívio Tavares de Araújo, “um astro isolado e imponente, a ponto de ter sido episodicamente apelidado de o Júpiter dos concertos”.3
Hoje, a peça é referida como uma dos maiores em seu gênero, descrita como sofisticada, sutil e surpreendente. Cuthbert Girdlestone, em seu livro Mozart And His Piano Concertos, considera o movimento de abertura, com suas claras características sinfônicas, uma das passagens mais originais mostradas ao mundo: “Já nas primeiras linhas sente-se sua natureza heroica — não o heroísmo falso de uma abertura para a qual algumas fórmulas impessoais são suficientes, mas o que expressa a verdadeira grandeza de espírito”.
O movimento inicial tem sido frequentemente comparado com o da última sinfonia de Mozart, a Júpiter (no 41, também em Dó Maior). Girdlestone considera, no entanto, que o paralelo mais próximo seja com o Quinteto de Cordas no 3 em Dó Maior, KV 515. Alguns acordes de uma marcha militar nos surpreendem com uma antecipação da Marselhesa, composta cinco meses depois da morte de Mozart. Há um marcante claro-escuro, com passagens brilhantes e festivas que, de repente, mudam para outras mais sombrias. Mozart introduz a repetição obsessiva de um mesmo tema, fazendo-nos lembrar Beethoven, que admirava e foi influenciado pelo K V 503, especialmente por seu complexo e dramático primeiro movimento. Também há nele um tema de quatro notas cujo padrão rítmico é semelhante ao da abertura da Quinta Sinfonia.
A aparente simplicidade do movimento do meio, marcado como “Andante”, o torna um contraponto efetivo ao primeiro movimento e, ao mesmo tempo, uma transição para a parte final, considerada, também por Girdlestone, como “o mais grave dos rondós de Mozart”. O “Andante” exibe um equilíbrio notável entre vivacidade e sutileza. Há nele um tema que é reconhecido como de uma obra anterior, uma adaptação da gavota do balé de Idomeneo, KV 366, mas que, neste concerto, não tem a mesma suavidade, incluindo passagens que antecipam Così Fan Tutte.
Mozart, na verdade, transformou o gênero musical do concerto em algo diferente dos padrões estilizados herdados por ele. Nesse sentido, sabe-se de uma passagem de Beethoven que, mesmo sem comprovação por escrito, era contada de boca em boca como ilustração do quanto ele devia a Mozart. Um aluno de Beethoven, em certa ocasião, começou a folhear a partitura de um de seus concertos para piano (provavelmente o de no 1 ou de no 3), quando o compositor lhe teria dito: “Ah, se o público tivesse tido ouvidos para compreendê-lo, este seria de Mozart” — mostrando assim a enorme reverência de um grande mestre por outro. Mozart, sempre genial, abriu caminho para que Beethoven conduzisse a música de concerto século XIX adentro.
HELIO MATTAR é presidente do Instituto Akatu e membro do Conselho de Administração da Fundação Osesp.
1. Predota, Georg. “Paving The Road! Mozart Piano Concerto no 25”. Interlude, 15 fev. 2013. Disponível em: www.interlude.hk/front/paving-the-road/.
2. Apud ARAÚJO, Olívio Tavares de. Procurar Mozart. São Paulo: Síntese, 1991.
3. Ibidem.
O dilema colocado desde sempre entre “o eterno e o moderno” — como queria o poeta Carlos Drummond de Andrade — parece acudir especialmente a César Franck. Discreto até o anonimato, este belga nacionalizado francês parecia destinado a uma existência apenas respeitosa de um virtuose do órgão, adorado pelos discípulos (Vincent d’Indy, Henri Duparc, Ernest Chausson, entre outros), mas muito pouco considerado pelo grand monde da arte parisiense.
Se morresse antes dos 50 anos, César Franck receberia apenas um panegírico como um dedicado professor da cadeira de órgão do Conservatório de Paris, cujas aulas atraíam também os alunos de composição. Mas à bonomia do mestre sobrepôs-se o criador de novos rumos da arte francesa no final do século XIX, e, aos 66 anos, época em que terminou a composição de sua Sinfonia em Ré Menor, Op.48, Franck impunha-se como um renovador a um restrito círculo de admiradores.
Dedicada ao compositor Henri Duparc (1848-1933) a obra foi executada sem grande repercussão em 1889. Ao contrário do Quinteto Para Cordas e Piano [interpretado pelo Quarteto Osesp e Jean-Efflam Bavouzet em setembro de 2014] — que levaria o escritor Marcel Proust quase à loucura: Franck repetiu a obra cinco vezes no quarto de Proust, quando este escrevia Em Busca do Tempo Perdido —, esta Sinfonia em Ré Menor só faria sucesso mais tarde. No futuro, ela encarnaria toda uma tendência histórica, principalmente da música francesa, com temas recorrentes ao longo de toda uma série de obras.
Já no início da exposição do primeiro tema, pode-se sentir a alusão claramente histórica ao começo do poema sinfônico Os Prelúdios, de Liszt. Porém, pareceria, antes, uma coincidência tanto mais feliz quanto mais se constata a prevalência claramente resgatada de Wagner e de Liszt, do cromatismo de suas obras mais comprometidas com a ideia de futuro, de domínio da história. E se pode aventar que a Sinfonia de César Franck, com os temas recorrentes (sem nunca constituir redundância), expressa um momento caro ao pensamento europeu da época: o da rememoração da história, no qual elementos são estudados e projetados de forma a evitar a repetição. No caso da música, podemos entender este momento como um claro processo de avanço e de superação, realizado sob a ótica de Beethoven, cuja inventividade nas variações foi sempre o grande modelo para Franck.
O próprio compositor não se furtaria à consideração de que, no último movimento da Sinfonia em Ré Menor, em consonância com a Sinfonia nº 9, de Beethoven (igualmente em Ré Menor), a recorrência aos temas já escutados não apareceriam como “meras citações”, mas como “a invenção de novos elementos”. [2006]
ENIO SQUEFF é crítico musical e artista plástico.
PROGRAMA
Sir Richard Armstrong regente
Angela Hewitt piano
Hector BERLIOZ [1803-69]
Beatriz e Benedito: Abertura [1860-2]
8 MIN
Wolfgang A. MOZART [1756-91]
Concerto nº 25 Para Piano em Dó Maior, KV 503 [1784-6]
- Allegro Maestoso
- Andante
- Finale: Allegretto
32 MIN
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César FRANCK [1822-1890]
Sinfonia em Ré Menor, Op.48 [1886-8]
- Lento - Allegro Non Troppo
- Allegretto
- Allegro Non Troppo
39 MIN