01/mar/2017
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Já se tornou um dos grandes clichês da literatura musical
dizer que a música moderna começa com a flauta de Prélude à l’Après-Midi d’un Faune [Prelúdio Para a Tarde de um Fauno], de 1894. O maestro e compositor francês Pierre Boulez chegou a escrever que “a flauta do Fauno instaurou uma nova respiração na arte musical”, redefinindo o conceito de forma, dando livre curso a um tipo inédito de expressividade”.1
Inspirado no poema A Tarde de um Fauno, do poeta simbolista Stéphane Mallarmé (1842–98), o Prelúdio marca o ponto em que Claude-Achille Debussy (1862–1918) atinge a maturidade de um estilo pessoal. Pelo êxito de público e crítica, a obra está na origem de uma reviravolta essencial na história da música, trazendo em si as principais descobertas que Debussy se esforçaria, ao longo da vida, para aprofundar e enriquecer.
Com o Prelúdio nasce uma nova maneira de pensar o tempo musical. O solo de flauta que dá início à peça utiliza uma alternância de notas longas e breves e de divisões binárias e ternárias que embaralham nossa percepção da pulsação e da organização do compasso. É um tempo solto e flexível, conduzido por harmonias que se expandem e se sobrepõem umas às outras, criando uma impressão de estagnação e, ao mesmo tempo, de espaço e de distância. Os temas melódicos não precisam mais ser desenvolvidos; ao contrário, podem ser repetidos circularmente em ambientes harmônicos e orquestrais que se modificam a cada giro. Somente na terceira apresentação do tema é estabelecida a verdadeira tonalidade do Prelúdio (Mi Maior — embora permaneça ambígua até o final).
O mesmo princípio será utilizado em “Nuages” [Nuvens], da série dos Nocturnes [Noturnos], de 1899 — em que um esquema melódico simples é rearmonizado continuamente, evocando a mutação ininterrupta das formas de uma nuvem sob as forças do vento —, e em muitas outras obras do compositor francês, tornando-se uma verdadeira assinatura de seu estilo. Debussy é o compositor que diz a mesma coisa duas, três vezes, mas sempre de modo diferente.
Não apresentar logo de início a indicação da tonalidade principal, mas retardá-lo ao máximo, é procedimento recorrente em suas obras. Essa característica aparece, por exemplo, em La Mer [O Mar], de 1905, e em “La Cathédrale Engloutie” [A Catedral Submersa], peça para piano do primeiro livro de Prelúdios (1910).
Ao fazer isso, Debussy cria a impressão de que suas composições começam “no meio do caminho”. A percepção da forma só
é desvelada aos poucos, com o próprio desenrolar da obra. Cada parte ilumina retrospectivamente aquela que lhe precedeu, ao mesmo tempo que refaz o horizonte de expectativas sobre as partes futuras. Desse modo, o compositor joga com a memória do ouvinte, exigindo uma escuta que se irradia simultaneamente em diversos sentidos, diferente da escuta mais unidirecional da linguagem clássica. Dispensando os dispositivos consagrados
de conclusão das obras (as cadências finais) em prol de uma música que se ergue do silêncio e a ele retorna de modo brando, quase sussurrante, suas obras muitas vezes não parecem ter início nem fim — a forma permanece aberta, surgindo do nada e desdobrando-se no infinito.
Outra característica marcante do estilo de Debussy é seu modo único de desfazer a rigidez da harmonia funcional. Há uma sensação contínua de que a tonalidade está prestes a nos escapar, de que o chão sob os nossos pés não é tão firme quanto imaginávamos. Desde o início de sua carreira — em suas primeiras mélodies sobre textos poéticos e nas primeiras peças para piano —, ele tentou estabelecer novas relações entre os acordes, que fugissem à dinâmica de causa e efeito típica da concatenação tonal (que faz com que, por exemplo, as dissonâncias sejam preparadas e resolvidas, ou que um acorde de dominante seja em geral seguido por um acorde de tônica). Sobretudo, o compositor buscava uma forma de escapar à maior sombra musical de seu tempo: Richard Wagner. Muitas são as fontes que compõem o rico imaginário de Debussy e que estão na base do seu estilo. A grande música russa do século XIX (sobretudo Mussorgsky); as músicas do Oriente, que ele conheceu na Exposição Universal de Paris, em 1889, e que o ajudaram a questionar as premissas do pensamento musical europeu; os cantos medievais e a polifonia renascentista, que fortaleceram nele o amor por temas feitos de linhas sinuosas, flexíveis e ornamentais (como a flauta do fauno), e pelo modalismo; as remissões ao universo espanhol — especialmente evidente em “La Sérénade Interrompue” [A Serenata Interrompida], do primeiro livro de Prelúdios, na maneira como o piano absorve e estiliza o toque do violão flamenco, ao mesmo tempo que escalas árabes sugerem uma presença moura; a influência de Chopin, de quem ele se considerava um herdeiro espiritual, na predileção por peças breves e condensadas (como os Prelúdios e os Estudos) e na relação visceral com o piano.
Seguindo a trilha de Chopin, Debussy empreendeu a exploração de novos timbres e novas cores no instrumento, criando procedimentos de escritura e uma técnica instrumental que tinham como objetivo dar a ilusão de prolongamento na duração das notas. Suas peças para piano — tão ricas e variadas, cada uma constituindo praticamente um universo em si — representam, sem dúvida, um momento alto na história do instrumento que por muito tempo foi o motor de desenvolvimento da música europeia.
Mas nenhuma dessas influências presentes no imaginário do compositor francês consegue ombrear com a influência de Wagner. Como escreveu o crítico Paul Roberts, “nenhum compositor desse período chegou a conhecer e a compreender a música de Wagner melhor do que Claude Debussy, e nenhum conseguiria encontrar os meios melhores para dela escapar”.2 O wagnerismo foi uma das grandes obsessões da segunda metade do século XIX — uma influência que se espraiou por praticamente toda a vida cultural europeia.
Debussy amou com ardor a música do compositor alemão; mas logo vislumbrou o perigo que ela representava para as gerações futuras. “É Tristão que atravanca o caminho de nosso trabalho” — relatou ele numa carta escrita em 1890, referindo-se à ópera Tristão e Isolda de Wagner: “Não vejo o que pode ser feito para além de Tristão”.3 Wagner organizava sua música numa corrente ininterrupta de tensões harmônicas que sempre adiavam sua resolução, num movimento que, frustrando continuamente qualquer possibilidade de repouso, parecia mimetizar a dinâmica do desejo, o moto-contínuo do anseio e do desespero românticos. Sua música é marcada por uma movimentação frenética e por uma intensidade nervosa que a encaminham na direção do grandioso, do solene e do sublime.
Debussy incorporou a técnica de Wagner, mas a desligou por dentro. Contrapôs ao peso teutônico do Romantismo tardio de Wagner uma renovação da linguagem musical a partir de qualidades, segundo ele “mais propriamente francesas”: clareza, leveza e elegância. Criou modos de interromper o fluxo tonal, levado ao seu momento de agitação máxima pelo cromatismo romântico, sem no entanto abandonar a tonalidade. Em meio a trechos de movimento convulsivo, extraiu figuras musicais extáticas, suspensas no tempo — acordes flutuantes, sem direcionalidade, sem dinâmica de movimento, como se fossem dissonâncias congeladas. Elaborou um discurso musical mais elíptico, que tende a caminhar por associações livres e redes de analogias, e não por uma concatenação lógica e linear.
Conforme seu estilo pessoal amadureceu, ele passou a utilizar cada vez mais efeitos de ressonância — o que, no caso das obras para piano, indica um uso preciso dos pedais — e a explorar afinidades sutis capazes de religar os acordes. Com isso, neutralizou a grandiloquência romântica e trouxe a música para uma temporalidade circunscrita a um espaço mais exíguo e, ao mesmo tempo, mais amplo e imprevisível — um pouco daquilo que o filósofo Gaston Bachelard designou como “imensidão íntima”. Como escreveu Vladimir Jankélévitch, “os acordes se encadeiam porque se evocam”.4
Ao mesmo tempo, no afã de escapar aos ditames da tonalidade, Debussy recorre cada vez mais à inserção de diferentes modos no interior de uma mesma obra. Na peça para piano “Voiles” [Velas], do primeiro livro de Prelúdios, ele explora de maneira sistemática e quase “pedagógica” a escala de tons inteiros (hexatônica), outra marca registrada de seu estilo, que aparece também na seção intermediária do Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, quando o esquema melódico do tema da flauta é recriado de modo estilizado, remetendo a uma espécie de improvisação em tons inteiros — o que levou o maestro Leonard Bernstein a indicá-lo como o primeiro uso de escala atonal na música europeia. Sem um centro tonal bem definido, uma vez que se baseia numa escala homogênea que praticamente não possui dinâmica de movimento, “Voiles” literalmente paira no ar, como as velas ao vento.
Mas eis que Debussy insere na parte central da peça duas linhas baseadas não na escala de tons inteiros, mas na pentatônica. A utilização da escala é realizada de modo tão hábil que se retira dela os traços de orientalismo, seu caráter folclórico, ficando-se apenas com sua luz radiante. Procedimento semelhante é aplicado na parte central de “Nuages”: aqui a pentatônica surge como raios de sol que subitamente atravessam a espessura opaca das nuvens.
Em outras peças – L’Isle Joyeuse [A Ilha Alegre], La Mer — a alternância de modos se torna ainda mais rápida e variada. A música não permanece por muito tempo num único modo: diferentes escalas se sucedem com rapidez, criando a sensação de uma tonalidade sempre instável e fugidia. Como garantir, em meio a tantas mudanças, a unidade da obra?
Difícil pensar em outro compositor que tenha costurado com tanta fineza a articulação entre as partes em suas obras. Conforme seu estilo amadurece, há um sentido crescente de fragmentação, de expansão pontilhista, que poderia facilmente descambar para a simples desordem. A música evolui de um tempo pulsado para um tempo liso e contínuo, gerando uma impressão de transição permanente — com Debussy, comentou Pierre Boulez, “o movente e o instante fazem irrupção dentro da música”. Somente depois de algumas audições atentas, conseguimos discernir sua estrutura profunda.
Ou seja: embora a música pareça desagregada, feita de pedaços soltos, na realidade é sustentada por uma poderosa unidade de fundo, que percebemos de modo inconsciente sem poder, contudo, determinar a origem desse equilíbrio frágil e misterioso.
La Mer, por exemplo, é uma espécie de sinfonia dividida em três movimentos, cada um trazendo um título bastante visual: “De l’Aube à Midi Sur la Mer” [Do Amanhecer ao Meio-dia no Mar], “Jeux de Vagues” [Jogo das Ondas], “Dialogue du Vent et de la Mer” [Diálogo Entre o Vento e o Mar]. Cada movimento é percorrido por temas cíclicos que religam sobre um plano tonal e temático a aparente descontinuidade da linguagem. Uma rigorosa organização de fundo mantém coesa a complexa e variada forma da obra. Trabalhando com minúcia extrema, Debussy fez com que uma organização rigorosa se dissimulasse sob a aparência de uma improvisação casual.
A libertação (e não abolição) da lógica discursiva do sistema tonal incidiu também sobre o novo valor dado à sonoridade pura dos acordes. De fato, Debussy parece ter sido um dos primeiros compositores a explorar de modo consciente o espectro puro do som como material expressivo. Não mais se resumindo a peças numa engrenagem temporal, os acordes podiam agora ser apreciados como objetos sonoros em si, sendo empregados mais pela “cor”, pela espacialidade e pela sensação direta do que pela função que exercem no encadeamento harmônico.
Isso trouxe para o primeiro plano um parâmetro que até então era considerado secundário: o timbre. Em Debussy, o timbre se torna cocriador da obra: todos os outros parâmetros (as alturas, a estrutura formal, os temas e os encadeamentos harmônicos) tornam-se indissociáveis dele. É uma concepção sonora que antecipa muito do que viria a ser feito no século XX, quando o timbre se tornou um elemento central da composição e se manifestou também numa renovação da orquestração.
Basta pensar que, no Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, os instrumentos de cordas não formam mais o núcleo da orquestra. Por outro lado, o compositor emancipou os instrumentos de sopro, demonstrando uma clara predileção pela flauta, com seu ataque pouco definido e sua aura encantatória, próxima a um estado de natureza. Várias de suas obras foram feitas para a flauta, que muitas vezes, como no caso do Prélude, aparece associada à harpa. A partir desses instrumentos, cria-se uma atmosfera evanescente, diáfana, que sugere o caráter fluido da água, a natureza impalpável do ar.
Há em Debussy uma atração (talvez uma identificação) pelos elementos mais fluidos e intangíveis, a água e o ar — elementos sujeitos a todos os tipos de metamorfoses —, e nesse sentido ele esteve próximo aos pintores impressionistas, com seu ideal de captura dos instantes fugidios de luz. Debussy queria que sua música fosse um pouco como esses elementos e chegou a vislumbrar a possibilidade de “uma colaboração misteriosa do ar, do movimento das folhas e do perfume das flores com a música”. Não à toa, água e ar inspiraram muitos dos títulos de suas obras: “Le Vent Dans la Plaine” [O Vento na Planície], “La Cathédrale Engloutie”, “Brouillards” [Nevoeiros], “Reflets Dans l’Eau” [Reflexos na Água], “Nuages”, e La Mer.
A inspiração frequente na natureza é também indicativa de seu compromisso com o mais simples e essencial. Debussy foi um crítico da complexidade vazia que acometia boa parte das obras modernas. “A música
se torna difícil toda vez que ela não existe”, escreveu ele. Contrapunha a isso uma música à plein air [ao ar livre], que pudesse respirar a simplicidade da vida real — algo como a cena de um festival no Bois de Boulogne que inspirou o movimento “Fêtes” [Festas], de seus Nocturnes, com soldados tocando trombetas e a multidão gritando.
De olho na vida das ruas, incorporou em sua obra a música dos cabarés parisienses que frequentava, as cantigas de brincadeiras de crianças e a música dos picadeiros de circo. Era uma forma de tirar o ranço e o peso da tradição, de devolver à música sua graça e leveza.
Se pensamos novamente no tema do Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, percebemos o quanto sua música já se aproxima da forma aberta do jazz: a melodia da flauta não chega a ser propriamente fixada numa forma, mas parece antes retornar como improviso livre sobre um mesmo esquema melódico. Em “Golliwog’s Cakewalk”, da série para piano Children’s Corner, o universo infantil de sua filha pequena serve como inspiração, junto com o ritmo alegre e mundano do ragtime, a música de salão que está na base da incorporação do piano ao jazz. Em meio a tanta alegria e despretensão, Debussy não resiste: saca uma citação ao famoso início do prelúdio de Tristão
e Isolda de Wagner, fazendo paródia com a pompa do compositor alemão, contrapondo ao mofo romântico do século XIX a liberdade e o vigor da nascente música popular do século XX.
Nas palavras do crítico musical Alex Ross, Debussy estava lançando “o germe de um modernismo alternativo, que chegaria à maturidade na música desadornada, de base popular, alegria jazzística e desenvolvimento automático dos anos 20”.5 As harmonias de Debussy estão, de fato, na base do jazz. E estão também na base de uma parte considerável da música popular brasileira, principalmente daquela que de algum modo segue os passos da bossa nova. Toda vez que alguém acusava suas harmonias de serem jazzísticas, Tom Jobim respondia que “aquilo já estava em Debussy”. E não eram apenas os acordes que o aproximavam do compositor francês: se pensarmos em canções como “Samba de Uma Nota só” e “Corcovado”, veremos como Jobim brinca de repetir pequenas frases sob diferentes luzes harmônicas, utilizando um modo de construir que remete ao do criador do Prélude à l’Après-Midi d’un Faune.
Muitos outros elementos aproximam Jobim
de Debussy: a inspiração na natureza, o amor da expressão nuançada, a permeabilidade entre erudito e popular, o desejo de evasão para um mundo onírico próprio, a busca árdua da simplicidade no seio da complexidade, o anseio de uma beleza mais leve e luminosa. Em Debussy, Jobim encontrou alguns dos elementos que lhe possibilitaram formar o delicado intimismo urbano da bossa nova: um modo sutil de construir melodias que nos comunicam uma temporalidade suspensa, um uso ampliado e plástico da harmonia. Há, em ambos, uma ênfase prazerosa na sensação do instante, uma percepção aguda (e muitas vezes melancólica) da impossibilidade de repetição — a nota que volta sob outro acorde já não é a mesma nota. Dizer a mesma coisa duas vezes, mas de modo diferente, é um dos traços definidores não apenas do estilo de Debussy, mas também de Tom Jobim.
Há uma longa história de amor entre o Brasil e a música de Claude-Achille Debussy. Num artigo publicado na Revue Musicale, em 1920, o compositor Darius Milhaud comentava espantado sobre a orientação marcadamente debussysta dos músicos brasileiros. Os conservatórios estavam abarrotados de partituras do músico francês, enquanto praticamente se ignorava o estardalhaço feito por Schoenberg
e a Escola de Viena. Tom Jobim é apenas um dos elos da cadeia que liga Debussy ao Brasil. Algo da delicada música do francês calou fundo em nosso imaginário.
PAULO DA COSTA E SILVA é professor de estética e filosofia da arte no Departamento de História e Teoria da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ. É colunista musical do site da revista Piauí e autor do livro a Tábua de Esmeralda e A Pequena Renascença de Jorge Ben (Cobogó, 2014).
1. Boulez, Pierre. Apontamentos de Aprendiz. Tradução de Stella Mou- tinho, Caio Pagano e Lídia Bazarian. São Paulo: Perspectiva, 2008.
2. Roberts, Paul. Claude Debussy. Nova York: Phaidon, 2008, p. 81.
3. Debussy, Claude. Correspondance (1872-1918). Paris: Gallimard, 2005, p. 62.
4. Cao, Hélène. Debussy. Paris: Éditions Jean-Paul Gisserot, 2001.
5. Ross, Alex. O Resto É Ruído: Escutando o Século xx. Tradução de Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 59. |