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ENSAIOS
Shostakovich: o Ruído do Tempo
Autor:Julian Barnes
01/mar/2017

O sarcasmo era perigoso para quem o empregava, identificável como linguagem do destruidor e do sabotador. Mas a ironia — talvez, às vezes, [Shostakovich] esperava — permitiria que conservasse o que valorizava, mesmo quando o ruído do tempo se tornava alto o bastante para quebrar as vidraças. O que ele valorizava? Música, família, amor. Amor, família, música. A ordem de importância costumava variar. A ironia poderia proteger a música? Desde que a música continuasse a ser uma linguagem secreta que permitia que contrabandeasse coisas pelos ouvidos errados. Mas não podia existir apenas como um código: às vezes era preciso dizer
 as coisas de forma direta. A ironia poderia proteger seus filhos? Maxim, na escola, com dez anos de idade, tinha sido obrigado a caluniar o pai publicamente numa prova de música. Nessas circunstâncias, de que servia a ironia para Galya e Maxim?


Quanto ao amor — não sua expressão desajeitada, impulsiva, gaguejada, irritante, mas o amor em geral: havia sempre acreditado que o amor, como uma força da natureza, era indestrutível; e que, quando ameaçado, poderia ser protegido, coberto, envolvido pela ironia. Agora já não tinha tanta certeza. A tirania se tornara tão eficiente em destruir — por que não destruiria também o amor, intencionalmente ou não? A tirania exigia que todos amassem o Partido, o Estado, o Grande Líder e Timoneiro, o Povo. Mas o amor individual — burguês e particularista — era uma distração desses “amores” grandiosos, nobres, sem sentido, irrefletidos. E nesses tempos, as pessoas estavam sempre em perigo de se tornarem menos do que eram inteiramente. Se fossem bastante aterrorizadas, elas se tornariam uma outra coisa, algo menor e reduzido: meras técnicas de sobrevivência. E, portanto, o que ele sentia não era apenas ansiedade, mas geralmente um medo absurdo: o medo de que os últimos dias do amor tivessem chegado.


Quando alguém cortava um pedaço de madeira, as lascas voavam: era isso que os construtores do socialismo gostavam de dizer. No entanto, e se a pessoa visse, quando largasse o machado, que havia reduzido todo o depósito de madeira a um monte de lascas?


No meio da guerra, tinha musicado Six Romances on Verses by British Poets — uma das obras banidas pela Comissão Federal de Repertório e depois permitida novamente por Stálin. A quinta canção era o Soneto
 nº 66 de Shakespeare: “Cansado de tudo isto, imploro por uma morte tranquila”. Como todos os russos, amava Shakespeare e o conhecera pelas traduções de Pasternak. Quando Pasternak lia o Soneto nº 66 em público, a plateia aguardava ansiosamente o nono verso:


“E a arte emudecida pelo poder.”


Nesse ponto o público se juntava — alguns sussurravam, outros bem baixinho, os mais corajosos bem alto, mas todos desmentiam aquele verso, todos se recusavam a ficar mudos.


Sim, amava Shakespeare; antes da guerra, compusera a música para uma encenação de Hamlet. Quem poderia duvidar que Shakespeare tinha uma profunda compreensão da alma e da condição humanas? Havia uma representação maior da destruição das ilusões humanas do que Rei Lear? Não, não estava perfeitamente correto: a destruição só era possível com uma única grande crise. Melhor: o que aconteceu foi que as ilusões humanas desmoronaram, murcharam. Foi um processo longo e cansativo, como uma dor de dente que alcançava o fundo da alma. Mas era possível arrancar o dente, e a dor passaria. As ilusões, no entanto, mesmo quando mortas, continuam a apodrecer e feder dentro de nós. Não podemos fugir do seu gosto e do seu cheiro. Carregamo-las conosco o tempo todo. Ele carregava.


Como era possível não amar Shakespeare? Shakespeare, afinal de contas, tinha amado a música. Suas peças eram cheias de música, mesmo as tragédias. Aquele momento em que, ao som da música, Lear desperta da loucura... E aquele momento, n’O Mercador de Veneza, em que Shakespeare diz que o homem que não gosta de música não é confiável; que um homem assim seria capaz de um ato ignóbil, até mesmo de assassinato ou traição. Portanto, é claro que os tiranos odiavam música, por mais que se esforçassem em fingir amá-la. Embora odiassem a poesia ainda mais. Ele desejava ter estado naquela leitura feita pelos poetas de Leningrado, quando Akhmatova subiu ao palco e toda a plateia instintivamente ficou de pé para aplaudi-la. Um gesto que levou Stálin a perguntar, furioso: “Quem organizou a manifestação?”. Mas, ainda mais do que a poesia, os tiranos odiavam e temiam o teatro. Shakespeare ergueu um espelho diante da natureza, e quem conseguia suportar ver seu próprio reflexo? Então Hamlet foi banido por muito tempo; Stálin odiava essa peça quase tanto quanto odiava Macbeth.

 

E no entanto, apesar de tudo isso, apesar do fato de ser inigualável em retratar tiranos mergulhados até os joelhos em sangue, Shakespeare era um tanto ingênuo. Porque seus monstros tinham dúvidas, pesadelos, dramas de consciência, culpa. Viam erguerem-se os espíritos daqueles que haviam matado. Mas na vida real, sob terror de verdade, onde estava a consciência culpada? Onde estavam os pesadelos? Tudo isso era sentimentalismo, falso otimismo, uma esperança de que o mundo seria o que nós quiséssemos que fosse e não o que era. Aqueles que cortavam a madeira e faziam as lascas voarem, aqueles que fumavam Belomory atrás de mesas na Grande Casa, aqueles que assinavam decretos e davam telefonemas, fechando um dossiê e com ele uma vida: será que alguns deles tinham pesadelos, ou jamais viram os espíritos dos mortos se erguerem para censurá-los?


Ilf e Petrov tinham escrito: “Não é suficiente amar o poder soviético. Ele precisa amar você.” Jamais seria amado pelo poder soviético. Vinha do rebanho errado: da intelectualidade liberal daquela cidade suspeita de “São Leninsburgo”. A pureza proletária era tão importante para os soviéticos quanto a pureza ariana para os nazistas. Além disso, teve a vaidade, ou a burrice, de notar e lembrar que tudo o que o Partido tinha dito ontem geralmente estava em direta contradição com o que o Partido dizia hoje. Queria ser deixado em paz com a música e a família e os amigos: o mais simples dos desejos, entretanto um desejo impossível de ser realizado. Queriam reconstruí-lo junto com todo o resto. Queriam que se reinventasse, como um trabalhador escravo no canal do Mar Branco. Exigiam “um Shostakovich otimista”. Mesmo que o mundo estivesse mergulhado até o pescoço em sangue e lama, tinha que manter um sorriso no rosto. Mas fazia parte da natureza do artista ser pessimista e neurótico. Então, queriam que não fosse um artista. Mas já havia tantos artistas que não eram artistas! Como disse Tchekov: “Quando eles servem café, não tente encontrar cerveja lá dentro”.


Da mesma forma, não tinha nenhuma das habilidades políticas necessárias: não gostava de lamber botas de borracha;
 não sabia quando conspirar contra os inocentes, quando trair
 os amigos. Precisava de alguém como Khrennikov para isso. Tikhon Nikolayevich Khrennikov: um compositor com a alma de um funcionário público. Khrennikov tinha um ouvido mediano para música, mas um ouvido perfeito quando se tratava de poder. Diziam que fora escolhido pessoalmente por Stálin, que tinha um instinto para essas coisas. “Um pescador reconhece outro pescador de longe”, como diz o ditado.


Khrennikov vinha, apropriadamente, de uma família de comerciantes de cavalos. Achava natural receber ordens — bem como instruções em composição — daqueles com ouvidos de asnos. Desde meados de 1930 vinha atacando artistas com mais talento e originalidade do que ele, mas quando o próprio Stálin o nomeou Primeiro Secretário da União dos Compositores, em 1948, o poder se tornou oficial. Liderou a agressão aos formalistas e cosmopolitas sem raízes, usando toda aquela terminologia que fazia os ouvidos sangrarem. Carreiras foram arruinadas, trabalhos suprimidos, famílias destruídas.


Mas era obrigado a admirar aquela compreensão do poder; nisso, era inigualável. Em lojas, costumava-se expor cartazes exortando as pessoas a se comportarem corretamente: “Cliente
 e vendedor, sejam amáveis um com o outro”. Mas o vendedor era sempre mais importante do que os clientes; havia muitos clientes e só um vendedor. Da mesma forma, havia muitos compositores, mas só um Primeiro Secretário. Com os colegas, Khrennikov se comportava como um vendedor de loja que nunca tinha lido aqueles cartazes. Tornava o pequeno poder absoluto: negava isto, concedia aquilo. E como qualquer funcionário público bem-sucedido, nunca esquecia onde estava o verdadeiro poder.


Quando era professor no conservatório, uma das obrigações de Dmitri Dmitrievich tinha sido ajudar a avaliar os alunos em ideologia marxista-leninista. Sentava-se com o examinador chefe sob uma enorme faixa que declarava: “A arte pertence ao povo — V. I. Lênin”. Como não tinha uma compreensão profunda de teoria política, permanecia em silêncio durante a maior parte do tempo, até que um dia o superior o censurou por falta de participação. Então, quando a aluna seguinte entrou e o examinador chefe fez um sinal enfático em sua direção, ele fez a pergunta mais simples que pôde.


—Diga-me, a quem pertence a arte?


A estudante ficou perplexa. Delicadamente, ele tentou ajudá-la com uma sugestão:


—Bem, o que foi que Lênin disse?


Mas ela estava aterrorizada demais para entender a dica e, apesar de ele ter inclinado a cabeça e revirado os olhos para cima, não conseguiu localizar a resposta.


Em sua opinião, ela havia se saído bem, e quando ocasionalmente a via nos corredores ou nas escadarias do Conservatório, tentava dar um sorriso encorajador. Embora, como havia fracassado em entender a mais explícita das pistas, ela talvez achasse que os sorrisos, assim como os estranhos movimentos de cabeça e revirar de olhos, fossem tiques faciais que o eminente compositor não conseguia controlar. De qualquer forma, toda vez que passava por ela, a pergunta reverberava em sua cabeça: “Diga-me, a quem pertence a arte?”.


A arte pertence a todos e a ninguém. A arte pertence a todos os tempos e a nenhum tempo. A arte pertence aos que criam e aos que desfrutam. A arte não pertence ao Povo e ao Partido, assim como nunca pertenceu à aristocracia e aos patronos. A arte é o sussurro da história, ouvido acima do ruído do tempo. A arte não existe em benefício da arte; existe em benefício do povo. Mas qual povo, e quem o define? Sempre pensara que a própria arte era antiaristocrática. Compunha, como os difamadores afirmavam, para uma elite burguesa cosmopolita? Não. Escrevia, como os difamadores desejavam, para o mineiro de Donbass, cansado de trabalhar e precisando de um estímulo? Não. Compunha música para todos e para ninguém. Compunha para aqueles que melhor apreciavam a música que escrevia, independentemente de origem social. Compunha para os ouvidos que conseguiam ouvir. E sabia, portanto, que todas as definições verdadeiras de arte são circulares, e todas as definições falsas dão à arte uma função específica.

 

 

JULIAN BARNES é romancista e ensaísta, autor de O Sentido de um Fim (Rocco, 2012), O Papagaio de Flaubert (Rocco, 1988), Inglaterra, In-glaterra (Rocco, 2000) e Arthur & George (Rocco, 2005), entre outros livros.