14/mar/2018
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Para nós, hoje, a música de concerto está diretamente associada à música instrumental, a música “pura” ou sem palavras. A despeito do grande interesse pela ópera nas últimas décadas, a música de concerto ainda é, primariamente, o domínio da sinfonia, do quarteto ou da sonata. A música sem palavras tem uma responsabilidade imaginária de zelar pelos valores mais elevados da arte; é como se, sem palavras, a música fosse mais música, e tanto mais profunda quanto mais distante da compreensão verbal. Esses valores estão entranhados na nossa cultura e dificilmente nos damos conta, portanto, do caráter especial desse repertório, no contexto mais amplo da tradição musical do Ocidente.
Dois mil anos de filosofia e teoria da música não mantiveram uma opinião muito alta sobre a composição sem palavras. Desde Platão e Aristóxeno até os comentaristas do Século das Luzes existe um consenso sobre a necessidade de a música reunir em si três domínios: “harmonia”, que é a relação racional entre os tons; “ritmo”, um sistema musical de tempo; e “logos”, a linguagem como expressão humana. Naturalmente, sempre houve música instrumental em todos os períodos da história. Mas mesmo os contemporâneos de Haydn e Mozart, em pleno classicismo, via de regra estão longe de descrever as sinfonias como uma linguagem compreensível em si mesma, com ambições além do mero passatempo. A própria ideia de se escutar uma obra em silêncio, com uma concentração comparável à da reflexão ou da leitura, causaria espanto às plateias de 250 anos atrás.
É importante notar a extraordinária transformação na ideia de música que se dá em fins do século XVIII. Escrevendo sobre a música — a música instrumental — numa seção da Crítica do juízo (§ 53), Kant descreve essa arte como “o mero jogo das sensações”, comparável aos perfumes, “mais uma questão de entretenimento do que de cultura”. É da mesma época o aforismo de Samuel Johnson de que “a música é um método de se empregar a mente sem nenhum trabalho de pensar”. Já na Estética de Hegel (1818), a música sem palavras é descrita, pelo contrário, como “o puro jogo das formas” e por isso mesmo aquele domínio onde ela é capaz de alcançar sua própria natureza. Para Hegel, a função da música instrumental é “tornar a interioridade inteligível a si mesma” (noção recuperada há alguns anos por Susanne Langer, ao dizer que a música é “nosso mito da vida interior”). Em contraponto com uma linhagem de comentários que se estende dos ensaístas Tieck e Wackenroder a filósofos como F. Schlegel e outros, na primeira geração do romantismo, Hegel vê a música sem palavras como um processo de interiorização, exprimindo “o eu em si, sem nenhum conteúdo acessório”. Adverte, no entanto, que ao abandonar qualquer conteúdo definido a música caminha para uma condição abstrata e vazia.
A formalização corresponde, para ele, a uma perda real de substância. A música só chega a si num movimento que, paradoxalmente, deve conduzi-la à esterilidade.
Mais três citações podem servir de emblema para o que é, com efeito, uma nova estética musical da modernidade. A primeira está em Schopenhauer, no Mundo como vontade e representação, quando diz (§ 52) que a música pura é a expressão mais íntima do mundo, a expressão “da Vontade em si”. A segunda vem do influente tratado sobre O belo musical de Eduard Hanslick (1854), no qual define a música, à maneira de Hegel, como “formas sonoras em movimento”, onde “forma” não é tanto o padrão de montagem como a “ideia”, o princípio potencial da composição. E, por fim, pode-se lembrar a grande frase do crítico inglês Walter Pater, de que “toda arte aspira constantemente à condição de música” (A renascença, 1873).
Como dar conta dessas mudanças? Do mero entretenimento à expressão mais íntima do mundo; de um passatempo ao mito da vida interior: como explicar uma alteração tão radical nas formas de se pensar a música? A resposta é complexa, envolvendo muitos fatores. Os mais importantes dizem respeito, por um lado, às versões modernas de consciência religiosa e às teorias da arte como religião. Associar arte e religião pode parecer estranho numa era tão vigorosamente laica como a nossa; mas é raro o problema de estética que não reproduz questões teológicas. Historicamente, a equação entre romantismo, religião e música aparece repetidas vezes em Hegel, como em Hoffmann, Kierkegaard e outros importantes autores do período. “A música é religião plenamente revelada”, escreve Tieck; e mesmo Adorno, já em nossos dias, vai construir uma teologia negativa da música como o “nome de Deus... a tentativa humana, sempre frustrada, de pronunciar o nome em si e não de multiplicar significados”.
Metáforas religiosas se confundem com aspirações poéticas, no momento em que a indefinição de significados na música passa a ser vista não como um defeito, mas sim sua maior virtude. A estética moderna da música nasce de uma ideia poética e teológica da inexpressibilidade: da música como uma linguagem acima da linguagem, capaz de nomear o inominável. Como já analisou, melhor que ninguém, o musicólogo Carl Dahlhaus, a estética da música, no período moderno, é uma verdadeira metafísica da música instrumental.
Por outro lado, seria preciso considerar também as teorias da linguagem que surgem nos primórdios do romantismo, teorias essas que fazem da língua a criação e não apenas a reprodução do pensamento. O “espírito” se manifestando de dentro para fora da linguagem, teorema de um linguista como Humboldt, é também o ponto de partida para a estética de um Hanslick. Mas nenhuma dessas ideias teria tido o efeito que tiveram sobre a estética musical se não fosse o desenvolvimento paralelo das próprias formas da composição e o surgimento de uma lógica musical capaz de dar corpo mais que metafórico à figura da música como linguagem. Sonatas, sinfonias e quartetos têm em comum a noção da música como elaboração de ideias, de verdadeiros argumentos conduzidos em som. É a integração de temas e a descoberta de possibilidades narrativas e dramáticas da tonalidade que fazem da música de fins do século XVIII uma arte do pensamento — uma arte das ideias em estado gestual, sem a definição e limitação da palavra. Se a música instrumental moderna é, como queria Hegel, um processo de “interiorização” e correspon- de, portanto, a mais uma etapa na história da religião, não é menos verdade que essa interiorização, no plano formal; corresponde a uma absorção da ópera e da música “humana”, ou vocal, em termos de música pura, inumana, “absoluta”. A transformação deixa suas marcas, que se percebem até hoje. Como veremos, a música pura manifesta sempre uma certa nostalgia do canto e da voz, mesmo no mais autêntico dos compositores instrumentais.
Muito sucintamente, é este o contexto em que surge a obra de Beethoven. “Surge” não é o termo mais adequado: de muitas maneiras, é a sua obra que inventa as formas modernas de escrever e de escutar música. Naturalmente, a despeito dos próprios mitos de originalidade associados à figura de Beethoven, nenhum compositor “surge” do nada e não haveria Beethoven sem Haendel, Haydn ou Mozart. Mas a verdade é que também não haveria Mozart sem Beethoven, ou pelo menos não Mozart como foi compreendido no século passado e no nosso. Todos os fatores descritos acima encontram sua realização suprema nas composições de Beethoven. Ele é o grande divisor das águas e pode-se bem dividir a história da música em dois períodos: antes de Beethoven (a.B.) e depois de Beethoven (d.B.), ou mais simplesmente B., já que, depois dele, não houve, até hoje, nenhum compositor que já não estivesse, de alguma forma, contido em Beethoven. Se é difícil acompanhar a transformação nas ideias de música descritas acima, isto é justamente porque estamos todos contidos em Beethoven, e o que é, de fato, excepcional nos parece rotineiro como um fato da natureza. A modernidade começa em Beethoven, como deve também acabar em Beethoven, naquele dia em que alguém for capaz de inventar outras formas de música — o que, no momento, é uma perspectiva insondável. Depois de Beethoven, tudo é comentário e nós vivemos na era de Beethoven; a sua força sobre a cultura é tamanha que já não se pode mais distinguir entre os que conhecem e os que não conhecem sua música. Como Platão, como Shakespeare ou Freud, Beethoven tem força inaugural e é uma contingência tão forte a ponto de passar despercebida. Assim como nossa moral é freudiana, nossa música é beethoveniana, o que pode não ser uma bênção, mas é a circunstância inalienável da nossa imaginação musical.
Visando a concisão, podemos nos deter sobre apenas três momentos, três emblemas da novidade ou modernidade de Beethoven, todos extraídos de obras bem conhecidas. O primeiro é uma passagem de dois compassos, no adágio da Sonata Op.110, onde a música se suspende e uma nota Lá é repetida nada menos que 29 vezes. Passagens similares ocorrem, entre outras, no terceiro movimento da Sonata Op.106 e no primeiro da Sétima Sinfonia. Ouvida fora de contexto, essa passagem nem música é: é o mero material da música, a música reduzida a som e o som, a seguir, elevado mais uma vez às riquezas do significado. É uma das formas que a música de Beethoven encontra para questionar sua própria natureza. A composição, em Beethoven, é sempre “sobre” a composição. É o que Schlegel ou Novalis chamavam, tecnicamente, de ironia.
Outra cena marcante é o início da Sonata nº 17, “A tempestade”. A sonata começa com um simples arpejo, as três notas em sequência de um acorde de dominante. Mais tarde, quando se apresenta claramente o primeiro tema, percebe-se, em retrospecto, que aquele acorde não era só uma introdução, mas sim o tema.
E, por outro lado, a “exposição” funciona também como uma transição, de tal modo que as expectativas formais são revertidas. O “tema” é uma introdução e uma transição; a exposição, por assim dizer, não existe. O tema, bem pensado, não é um tema, mas sim uma célula básica que assume as mais variadas formas e funções. A ideia musical vai além do que se apresenta na fachada; é um padrão de intervalos ou ritmos que se percebe em todo e nenhum lugar, um modelo que só existe em suas realizações parciais, atualizações da ideia invisível. Cria-se, assim, uma espécie de contraponto entre a estrutura superficial e outra estrutura “profunda”, que organiza a obra. A música, aqui, está além da simples exposição auditiva. A partitura é um texto, com todas as implicações da palavra. O tema é apenas o objeto de um processo, onde o significado depende da superposição temporal dos elementos. É o que se chama de alegoria.
O terceiro exemplo é um movimento inteiro, a “Cavatina” do Quarteto Op.130. Equivalentes se encontram em qualquer outro quarteto ou sonata, mas a “Cavatina” é um movimento mais amplo, e supostamente a preferida, entre todas as suas obras, pelo próprio compositor. O que é interessante, aqui, é a maneira como a “Cavatina” integra características vocais a um idioma puramente instrumental. Recitativos e árias se sucedem na música de Beethoven, e assumem quase um caráter de citação; mas são citações transformadas, traduzidas a um outro reino. A “Cavatina” é música vocal, mas que voz é esta? Que espécie de voz habita, como um espectro, essa música “absoluta” e moderna? Questões dessa ordem são mais bem trabalhadas na teoria literária do que na musicologia, mas nem um grande analista da voz, como Geoffrey Hartman, tem um nome para o que se dá na música de Beethoven. É uma evidência, entre outras, de que Beethoven ainda está à nossa frente e que ainda há de nos ensinar outras formas de interpretar sua música.
“De Beethoven vêm todas as coisas ainda hoje escritas e discutidas entre os homens da música.” São palavras de Emerson, trocando Platão por Beethoven e ideias por música. Em Beethoven estão todos os modernismos, de Berlioz a Boulez, e com repercussões importantes na filosofia e na literatura (basta pensar em Nietzsche e Proust, ou em Mallarmé e os praticantes da poésie absolue). Estudar Beethoven, num sentido crucial, é estudar a nós mesmos, e compor música é uma forma de escutar Beethoven. A última palavra pode ficar com o profeta e comediante George Bernard Shaw. Num texto escrito para o Radio Times, em 1927, em comemoração ao centenário de nascimento do compositor, Shaw reclamava, lucidamente, da força que tem Beethoven para “impor sobre nós seu temperamento avassalador”. Mas reconhecia que compreender Beethoven é “compreender também o que há de mais profundo em toda música que veio depois dele”. Três gerações musicais mais tarde, as palavras de Shaw permanecem válidas, e dão testemunho da atualidade permanente de Beethoven na nossa cultura.
[1996]
Arthur Nestrovski
Diretor Artístico da Osesp
ADORNO, Theodor. “Fragment über Musik und Sprache. In: _____. Quasi una fantasia. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 1963 e reed.
DAHLHAUS, Carl. Die Idee der absoluten Musik. Kassel: Bärenreiter Verlag, 1978.
_____ Musikästhetik. Köln: Hans Gerig, 1967.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Trad. Nicolino Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.
SHAW, George Bernard. Shaw on music. Ed. Eric Bentley.
New York: Doubleday, 1955.
Texto extraído do livro Ironias da modernidade: Ensaios sobre literatura e música. São Paulo: Editora Ática, 1996, pp. 136-142. |